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Carta do Fernando Pessoa à Ofélia Queiroz no 29/11/1920

por Elisabeth Mateo, em 17.05.14

 

Ofelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ofelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ofelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino teria culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeiçes violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julgar que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, sao privadas da possibilidade dessa ilusao, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidao, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não háo-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ofelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um parente o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeiçes e outros caminhos, consevam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de "outras afeiçes" e de "outros caminhos" é consigo, Ofelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembraça, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

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publicado às 10:13


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